Crítica redigida e editada por: Brunna Antunes
O livro autobiográfico Cem Escovadas Antes de Ir Para a Cama, da escritora italiana Melissa Panarello (22), relata as mais diversas e precoces experiências sexuais da autora, que admite ter vivido tudo o que está abordado no livro, apenas alterando datas e nomes. O livro começa quando Melissa, aos 15 anos, tem a sua primeira relação sexual nada convecional com um garoto por quem se julgava apaixonada. A partir desse episódio, Melissa se sente traída, já que percebe que não é amada por ele, e decide então se entregar (apenas de corpo, não de alma) para qualquer homem que aparecesse na sua frente. Melissa considera o ato um modo de vingança contra todos os homens que usam as mulheres, um ato feminista. O livro conta minuciosamente, e sem embromação, todos os casos de Melissa, desde sexo com desconhecidos até orgias regadas à droga e muita humilhação.

Após o sucesso mundial, Cem Escovadas..., que já teve cerca de um milhão de exemplares vendidos em todo o mundo e virou uma febre em vários países, inclusive no Brasil (por que será, né?), ganhou em 2005 a sua adaptação para o cinema, dirigida pelo cineasta Luca Guadagnino.
Antes de começar a crítica, gostaria de dizer que admiro adaptações literárias para o cinema. Muitas pessoas têm o preconceito de dizer que certos livros são melhores que os filmes, o que pode ser ou não verdade. Mas não podemos esquecer que são duas artes distintas: o cinema se fixa na imagem, enquanto a literatura possui a sua riqueza na descrição com palavras. Então, quando um leitor e espectador de cinema assiste a uma obra fílmica e a define como "pobre" apenas porque ela não foi fiel em tal cena, ou então porque teve cortes em tais partes, acredito que tal pessoa nunca adaptou um livro para saber o que a arte da adaptação requer, e o quanto é trabalhoso lapidar os momentos realmente importantes do livro, para que deste modo caibam em 100 minutos de projeção.
O filme começa com uma atmosfera similar a do livro, quando Melissa descobre seu corpo e a si mesma. No livro, temos isso em muitas páginas, o que dá bônus ao roteirista, por ter diminuído a passagem e mantido seu valor simbólico.
A partir daí, temos a imagem (câmera afastada) de Melissa e sua amiga Manuela discutindo sobre entrar ou não em uma casa ao fundo, casa do paquera de Melissa. Como um frenesi óptico, temos um zoom abrupto dessa imagem. É com essa cena que podemos analisar a direção do filme: ousada e com muitas experimentações. Assim como na cena em que Melissa foge do apartamento de um dos seus casos, em que a câmera a acompanha sem steadycam (ou seja, a câmera está na mão) e o camera man está correndo, o que resulta em imagem tremida. Esteticamente bonito, tem toda uma metáfora para o abalo emocional, um quê realismo...mas imageticamente nauseante, essa corrida.
Voltando ao começo, temos então a entrada de Melissa na casa do rapaz por quem sofre de amores até boa parte do filme. Nos iludimos de que se trata de um típico filme teenager, com toda aquela história de menina excluída e coisa e tal, até que as coisas se tornam pesadas e uma cena de sexo oral implícito ocorre. Até aí, um choque para quem não sabe da história. Mais um bônus para o roteirista, que soube criar um suspense de primeira linha nessa cena.

Somos levados o tempo todo pela narração de Melissa, que conta seus sentimentos e angústias, e explica o porquê de suas decisões ao longo do filme. A narração passa raspando pela linha do interesse, poderia ser mais trabalhada obviamente, mas foi satisfatória na maioria das vezes.
Muitos planos interessantes, em que a câmera se aproxima rapidamente do personagem, para captar a sua reação e intimidar seus olhares. A decupagem (termo usado pelos cineastas para dividir um roteiro em planos) é harmônica, pois apesar de ser um filme muito experimental em termos de movimento de câmera, ele segue uma linha de raciocínio nos cortes.
Me detendo agora aos detalhes de roteiro, posso dizer sem medo que é um filme bem estruturado, apesar de não ser uma história das mais interessantes. A seqüência dramatática é linear, existe uma conexão entre as cenas.
O roteiro também pecou muito com a inclusão da personagem da avó, que foi colocada para resolver o problema da falta de um elemento que causasse impacto em Melissa, mas que acabou se tornando um empecilho para a progressão da moral, que é a de que protagonista percebe que o amor é mais importante e etc.
Sob o ponto de vista estético, o filme não deixa a desejar. A fotografia e a direção de arte foram muito contextualizadas. As cenas onde ocorriam os encontros de Melissa geralmente possuiam uma fotografia sombria, as vezes escura, para enfatizar a questão do pecado, do ato indigno e mundano. Já as cenas em que Melissa se comportava como uma adolescente comum da sua idade são coloridas e iluminadas.
Uma trilha sonora impecável...do clássico ao contemporâneo. É interessante essa mistura do novo com o velho, avó e neta, duas pessoas muito semelhantes.
Daí partimos para o título: Cem Escovadas Antes de Dormir. Refere-se à um costume da avó, ensinado à Melissa, de escovar os cabelos 100 vezes para se tornar pura. Ou seja, Melissa faz tudo de obsceno e asqueroso, e depois escova os cabelos. Interessante a adaptação dessa parte para o cinema, acho que ficou bem marcado.

Atuações razoáveis: creio que muito se deve ao roteiro. Explico: a mãe da Melissa, uma personagem totalmente apagada e esculachada durante a trama, perde todo o realismo. Que mãe seria como aquela, que ao ver sua filha chegar em casa como uma prostituta e toda roxa, não iria querer saber do que se trata? Sim, vocês dirão, existem mães assim...Mas a mãe de Melissa não tem esse perfil: ela é muito humana, e ama a filha. Isso fica claro. Agora, esse furo no roteiro deixou muito a desejar. Estranho.
A atuação de Geraldine Chaplin (isso mesmo, ela é filha do mestre), avó de Melissa, é de cara a mais experiente. Ela soube encarnar bem o papel de avó liberal.
Daniele...o rapaz por quem Melissa é apaixonada. Boa atuação. Boa direção, aliás, que soube captar as reações do ator em plena filmagem.
Cena desnecessária: a cena em que Daniele, que após ter saído com a namorada de seu melhor amigo, tem uma briga com ele. Isso ocorre quase no fim do filme. Os dois precisavam mesmo brigar? Mudaria algo na trama? Ora, já sabemos que o Daniele é canalha, isso foi fortemente enfatizado. Para que serviu essa cena?
Concluo dizendo que o filme, apesar das críticas (que considero construtivas), não me desapontou. É um filme voltado para um público jovem, onde as cenas fortes foram abolidas. Por ser uma adaptação de um livro polêmico, muitos poderão sentir que não é um bom filme, por não ser fiel ao erotismo da literatura de Panarello. Foi adaptado com censuras, e mesmo assim, mereceu destaque. Fato é que, caso não tivesse notado o potencial do filme, nem haveria postado.
O livro, muitos irão dizer, tem muito mais descrições de sexo, muito mais personagens, tem a relação da protagonista com vários tipos de pessoas, drogas, etc. Agora, voltando à questão da adaptação para cinema: quantas horas deveria ter um filme com todas as cenas e pormenores do livro? Você o veria no cinema?